Na época que o Espírito Santo possuía a capital inteiramente insular, sem ainda ter abocanhado o pedaço de lá da Ponte da Passagem, para o aborrecimento dos nossos amigos serranos, Vila Velha tinha o orgulho de se denominar continental. Daí, Antônio Gil Veloso e Walter Aguiar fundaram o jornal “O Continente”, com forte viés político em prol da UDN no ano de 1953.
Antes disso, já existia o Cine Continental.
Seu proprietário era Antônio Saliba, homem de vozeirão forte e risada farta, que morava atrás do cinema. Ele fazia parte do conjunto chamado “os três Antônios”: ele, Antônio Gil Veloso e Antônio Coelho, parceiro político e jornalístico de Veloso e neto do Desembargador Ferreira Coelho. Bom, esse era o meu pai!
Eu vivia aquela época de imaginação infantil, sempre imaginando que os atores desempenhavam seus papéis atrás da tela, e queria saber como eles conseguiam isso! E por que eu nunca os via depois dos filmes?
Foi difícil então aceitar que aquilo era uma série de fotografias projetadas na tela. Até lá, quando se via um monstro, o terror me invadia!
Quem operava o projetor ara o Calunga. E era um operador e tanto! Já foi passado filme de trás para frente, de cabeça para baixo ou, então, como em “El Cid”, começando pelo rolo do meio para o rolo final e, só então, o primeiro rolo era passado. A plateia simplesmente adorava essas barbeiragens. Ninguém reclamava.
Se Tia Neneca, esposa do Comissário Otávio Queiroz, hoje, nome de rua, se atrasasse, saía o pobre do Calunga para ver o que tinha acontecido. Ela não perdia um filme, sequer! Nesses dias, a seção se atrasava... e ninguém reclamava, também!
Vim a saber de uma das artes mais fantásticas que já soube naquele cinema. No filme “Shane”, eis que havia uma personagem que falava pelos cotovelos. Alguém gritou: “cala a boca, Amália Cambucira”. Todos, logicamente, riram. Menos uma pessoa: a própria Amália Cambucira, uma bondosa e simpática senhora moradora de Vila Velha, conhecida por ser faladeira como ela só. Naquele momento, deixou a simpatia de lado, mandou parar o filme, acendeu as luzes do salão e perguntou quem tinha sido! Isso aconteceu na década de 1960, mas somente nos anos 2000 que o autor da façanha se revelou a mim!
Uma boa época, apesar dos sacos de pipoca vendidos pelo seu Elias na porta não terem o tamanho, nem o preço, avantajado de hoje e as cadeiras de madeira compensada terem os bancos recolhíveis. Nas cadeiras de trás tinham uma inscrição: Polícia. Eram os lugares destinados às autoridades policiais que assistiam aos filmes de graça e impunham a ordem no recinto.
E que filmes marcaram minha infância! Não poderia ser impróprio para menores de dez anos, senão, eu não entrava. Não adiantava mentir a idade, o que enganava o porteiro (ou ele simplesmente aceitava para dar mais bilheteria), pois, com dez anos, eu tinha o físico raquítico de um menino do pré-primário!
Posso começar pelos brasileiros. Muito antes das pornochanchadas, tínhamos as chanchadas com Grande Otelo e Orcarito. Grande Otelo, nascido em Uberlândia, MG, era o nome artístico de Sebastião Bernardes de Souza Prata. Ator notável, conhecido internacionalmente, tendo trabalhado inclusive com Orson Welles e Werner Herzog.
Já Oscarito, malaguenho de nascença, tinha como nome verdadeiro Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz. Filho de alemão com portuguesa, um dos mais notáveis comediantes de cinema de todos os tempos, comparável com Charles Chaplin, Cantinflas e Fernandel.
A dupla trabalhou em filmes em preto e branco de encher os olhos e lavar a alma. Claro: surgiam críticos que malhavam seus filmes porque não eram americanos. Uma pena que muitos se deixaram se cegar com tamanho preconceito.
Mas tinha outros filmes, também. Alguém deve ter escutado no nome Maciste! Uma paródia dos filmes de Hércules, também sucesso na época, interpretado pelo americano Mark Forest, um ator de musculatura impressionante, cujo nome verdadeiro é Lou Degni, hoje um septuagenário cantor de ópera. Os filmes de Maciste eram italianos dublados em inglês, afinal, “business is business”. Antológica uma cena em que ele acende uma fogueira na praia e pesca uma baleia se preparando para comê-la inteira. Os títulos dos filmes são pérolas: “Hércules, Sansão, Maciste e Ursus”, com os fortões da época, usando uma fórmula que hoje é copiada com a franquia “Os Mercenários”. Teve, também, “Zorro contra Maciste”, “Maciste contra o Vampiro” e, por aí, vai!
Nessa mesma linha, os filmes italianos também venderam muito, apesar das pauladas dos críticos. Sobre o ator Steve Reeves, também norte-americano, assistimos “Rômulo e Remo”, “A Guerra de Troia” e “Os Últimos Dias de Pompeia”.
Abrimos um parêntese sobre os cartazes dos filmes, expostos com fotografias de cenas. No caso dos filmes italianos, cada foto tinha uma pose do ator em destaque. Os pequenos, como eu, não conseguiam nunca identificar qual cena retratava aquela foto...
E os filmes americanos de aventura? “Viagem ao Centro da Terra”, com Pat Boone, James Mason e Diane Baker. O tiranossauro jamais morreria com um tiro, mas o golpe de lança de Hans resolveu a questão! Para os mais novos, Pat Boone era uma febre para os fãs de um rock’n’roll comportado e James Mason já tinha feito outro personagem de Júlio Verne: o Capitão Nemo em “20 Mil Léguas Submarinas”.
Teve, também, “A Ilha Misteriosa”, com abelhas gigantes e um caranguejo enorme que eles cozinham num gêiser. Capixaba nenhum botou defeito nesse argumento. Nessa película, Capitão Nemo foi interpretado por Herbert Lom.
E não podemos esquecer de Tarzan. Como esquecer o maior super-herói da nossa infância, capaz de saltar de cima da ponte do Brooklyn e chegar vivo, só para não ter de enfrentar um policial gordinho que tinha medo de altura? Vivemos momentos memoráveis com Johnny Weissmuller e Maureen O’Sullivan, a Jane. Johnny Weissmuller era um romeno com o nome real de János Weissmüller, campeão olímpico de natação, foi o mais aclamado de todos os atores que fizeram o personagem. Seus filmes foram todos rodados em estúdio e ele foi Tarzan entre 1932 e 1948, fazendo, em seguida, Jim das Selvas.
E, para terminar, Rocky Lane, cujo chapéu só saía da cabeça se ele tirasse! O ator norte-americano, com o complicado nome de Harry Leonard Albershardt, fazia seriados que empolgavam a garotada. Fez ainda o “Rei da Polícia Montada” e a voz de Mr. Ed, o cavalo falante, para a televisão.
E assim, minha infância ficou guardada!
Fonte de pesquisa: Wikipedia.